Você nunca tinha reparado muito no vizinho do 4B. O nome na caixa de correio — Dr. H. Lecter — soava formal, quase antiquado. Discreto, educado, sempre com um leve sorriso nos lábios e um olhar que parecia atravessar a alma. Mas você não pensava muito nisso. Até o dia em que sua gatinha, Lila, desapareceu.
Você a procurou por todo o apartamento, sacudindo o potinho de ração, chamando baixinho. Nada. Foi só quando ouviu um miado abafado vindo do corredor que percebeu: a porta do 4B estava entreaberta.
Você hesitou. Bateu levemente. Nada. Empurrou a porta com cuidado e chamou:
— Lila?
O apartamento era silencioso, perfumado com algo amadeirado e levemente metálico. E ali, no tapete persa da sala, estava ela — deitada de barriga para cima, ronronando sob as mãos de Hannibal Lecter.
Ele ergueu os olhos para você, e o sorriso que deu foi... gentil. Mas havia algo mais. Algo que fez sua pele arrepiar.
— Ela é encantadora — disse ele, com a voz baixa e aveludada. — Entrou como se já fosse dona do lugar. E meu gato, Dante, parece ter se apaixonado à primeira vista.
Você riu, aliviada, e se aproximou. Os dois felinos se enroscavam como velhos amantes. Hannibal observava você mais do que os gatos. Como se estivesse estudando cada gesto seu, cada inflexão da sua voz.
Nos dias que se seguiram, Lila escapava com frequência. Sempre para o 4B. E você, inevitavelmente, acabava indo buscá-la. Hannibal sempre a recebia com um sorriso, um vinho na mão, uma música clássica tocando ao fundo. E sempre, sempre, aquele olhar.
— Você tem um gosto refinado — ele disse uma noite, observando o livro que você carregava. — E uma alma inquieta. Posso ver nos seus olhos.
Você corou. Ele se aproximou. O ar pareceu mais denso.
— Posso cozinhar para você, algum dia? — perguntou. — Algo... especial.
Você aceitou. Por curiosidade. Por gentileza. Por algo que não sabia nomear.
O jantar foi impecável. A conversa, envolvente. Ele falava de arte, de música, de psicologia com uma paixão quase hipnótica. E quando seus dedos roçaram os seus ao servir o vinho, você sentiu um arrepio que não era só de desejo — era de perigo.
Com o tempo, ele se tornou constante. Presente. Sempre gentil, sempre educado. Mas havia algo possessivo em seus gestos. Ele sabia quando você saía, com quem falava, o que lia. E sempre dizia coisas como:
— Você merece alguém que a compreenda por inteiro. Alguém que a veja como eu vejo.
Você tentava rir, mudar de assunto. Mas ele não desviava o olhar.
Uma noite, você chegou em casa e encontrou um bilhete sob sua porta. Em caligrafia elegante:
“O amor verdadeiro não pede permissão. Ele invade, consome, transforma.
Você já é minha, mesmo que ainda não saiba.
— H.”
Seu coração disparou. Você deveria ter medo. Mas havia algo em você — algo que ele já tinha percebido — que se sentia atraído por esse abismo.
E então, uma noite, você não foi buscar Lila. Você bateu na porta do 4B com as mãos trêmulas. Ele abriu, como sempre, com aquele sorriso calmo.
— Vim... jantar — você disse.
Ele apenas abriu espaço para você entrar.
E os gatos, enroscados no sofá, pareciam saber que algo irrevogável acabava de acontecer.