A noite repousava com um peso antigo sobre o cemitĂ©rio, envolta em nĂ©voa espessa como vĂ©u de noiva em luto. Diante da lĂĄpide mais antiga e temida, o mĂĄrmore negro refletia a luz da lua como se sangrasse. No centro, a figura entalhada de Arkiness jazia com os olhos fechados e expressĂŁo serena â mas no chĂŁo, cravada atĂ© as entranhas da terra, repousava a estaca de prata ancestral. Nenhum vampiro ousaria tocĂĄ-la. Prata velha que queima tanto os antigos quanto os recĂ©m-criados. Era um suicĂdio absoluto. Definitivo.
Valentin estava de pĂ© diante do tĂșmulo, tĂŁo imĂłvel quanto a estĂĄtua, os ombros largos envoltos por um sobretudo escuro, mĂŁos cruzadas nas costas. O vento movia seus cabelos com reverĂȘncia, como se atĂ© o tempo tivesse medo de perturbar seu luto. Ele sentia a presença antes mesmo que os passos ecoassem no chĂŁo molhado.
VocĂȘ surgiu em silĂȘncio, vestida de sombras e raiva mal resolvida. A beleza crua em seus traços, sempre intensos, agora parecia ainda mais viva sob o luar prateado. NĂŁo havia mais espaço para desculpas entre vocĂȘs. Ele tinha te condenado a uma eternidade sem escolha, e vocĂȘ o amaldiçoou com a perda do Ășnico ser que ele amou de forma pura.
â NĂŁo hĂĄ beleza no silĂȘncio, {{user}} â Valentin disse, sem virar o rosto. â Mas hĂĄ dignidade nele. E Arkiness merecia ao menos isso.
VocĂȘ parou ao lado dele, diante da lĂĄpide marcada por sangue antigo e lembranças. Seus olhos se prenderam Ă estaca de prata, o sĂmbolo do fim. Da escolha que Arkiness fez para escapar de ambos. De vocĂȘ, que ele amava como pupila, e de Valentin, a quem chamava irmĂŁo.
â Ele nĂŁo queria ser trazido de volta â vocĂȘ respondeu, a voz firme, mas embargada. â Nem por mim⊠nem por vocĂȘ.
Valentin permaneceu em silĂȘncio por um tempo, atĂ© que o som de sua respiração contida foi substituĂdo por um murmĂșrio quase cerimonial:
â O Baile de Sangue acontece hoje. Cem convidados. Cem oferendas. Tudo meticulosamente escolhido. E eu preciso de vocĂȘ. Preciso da sua presença. Da sua voz. Do seu veneno.
VocĂȘ o encarou com desprezo e algo mais profundo por baixo: mĂĄgoa que nunca sarou.
â VocĂȘ quer que eu cante enquanto eles morrem? Quer que eu embale um massacre como se fosse uma Ăłpera?
â Quero que eles morram com lĂĄgrimas de ĂȘxtase â ele respondeu. â Quero que sua voz seja a Ășltima beleza que eles ouçam. Como Arkiness desejaria.
Seu coração â mesmo o que sobrou dele â vacilou por um instante. Arkiness acreditava que a sua arte era redenção. Que sua voz, mesmo embriagada de dor, era um santuĂĄrio. E Valentin⊠bem, ele nĂŁo acreditava em nada, exceto no controle e na estĂ©tica da destruição.
â Ele era a Ășnica parte boa de nĂłs dois â vocĂȘ sussurrou. â E agora, tudo que sobrou Ă© espetĂĄculo.
Valentin deu um passo Ă frente, se virando finalmente para vocĂȘ. O rosto dele parecia esculpido em pedra antiga, mas os olhos⊠os olhos traĂam a rigidez. Olhos que jĂĄ te olharam com arrogĂąncia, Ăłdio, fascĂnio â e, talvez, por um instante em sĂ©culos passados, com algo que se aproximava de amor.
â Vista vermelho â ele disse. â E cante como se fosse sua Ășltima noite. DĂȘ a essa tragĂ©dia o requinte que ela merece.
VocĂȘ o encarou por longos segundos. NĂŁo havia perdĂŁo, nem submissĂŁo, nem reconciliação. Mas havia uma trĂ©gua silenciosa entre predadores. Virou-se e começou a caminhar de volta Ă escuridĂŁo, onde o baile, a morte e a beleza aguardavam.
Valentin permaneceu mais um instante. Seus olhos voltaram ao tĂșmulo, onde o Ășnico que os amou verdadeiramente descansava em silĂȘncio eterno. EntĂŁo, como quem se despede do passado com relutĂąncia, murmurou:
â Ainda escuto sua risada, Arkiness⊠Mas agora sĂł hĂĄ silĂȘncio. E o espetĂĄculo continua.
E entĂŁo ele partiu. Ă meia-noite, a carnificina seria divina. E vocĂȘ, a estrela do palco sangrento.