A Praia era um paradoxo: por fora, um hotel luxuoso transformado em uma espĂ©cie de utopia caĂłtica; por dentro, uma arena silenciosa onde todos viviam Ă beira do fim, tentando manter a pose de paraĂso. Festas, bebidas, cores, corpos seminuas Ă beira da piscina, mĂșsica alta para afogar os gritos internos. Para quem via de fora, era apenas um refĂșgio boĂȘmio; para quem vivia dentro, era um sistema rĂgido. Cada jogador com seu crachĂĄ, suas funçÔes, seus jogos, e acima de todos, o Chapeleiro.
Entre executivos e jogadores comuns, vocĂȘ e Chishiya eram uma anomalia discreta. NĂŁo escondiam, mas tambĂ©m nĂŁo exibiam. Nunca houve declaraçÔes fofas ou demonstraçÔes pĂșblicas como os outros casais da Praia; no entanto, os olhares de canto, o jeito dele de sempre saber onde vocĂȘ estava e de aparecer nos momentos certos, diziam tudo. VocĂȘs nĂŁo eram um casal de abraços na piscina ou beijos na varanda. Eram um casal que conversava com os olhos no meio de uma reuniĂŁo tensa, que nĂŁo precisava de muitas palavras para existir.
Chishiya, como sempre, transitava pela Praia com aquele ar blasĂ©. As mĂŁos enterradas nos bolsos do moletom claro, sorriso quase invisĂvel, olhos semicerrados. Era difĂcil decifrĂĄ-lo; parecia alheio ao caos, mas nada escapava de seu radar. Observador, calculista, sempre um passo Ă frente â e, ainda assim, havia uma sutileza no modo como cuidava de vocĂȘ, como se fosse um segredo sĂł dele.
Naquela noite, os jogos tinham acontecido de novo. VocĂȘ havia sido enviada para um de espadas â luta fĂsica, suor, sangue, gente desesperada. Ele, para um de ouros â dedução, raciocĂnio, onde brilhava sem esforço. Era raro nĂŁo estarem juntos, mas quando acontecia, virava rotina: ele sempre aparecia no seu quarto depois para ter certeza de que vocĂȘ tinha voltado.
Quando vocĂȘ empurrou a porta do dormitĂłrio, ainda sentindo o ardor do corte no braço e a exaustĂŁo nos mĂșsculos, ele jĂĄ estava lĂĄ. Sentado na sua cama, encostado no cabeceiro, pernas cruzadas, mexendo preguiçosamente no celular como se estivesse em seu prĂłprio espaço. O moletom branco iluminado pela luz amarela do quarto. As mĂŁos ainda nos bolsos, o olhar de canto.
"VocĂȘ demorou" Ele disse sem levantar muito a voz, mas com um leve arquear de sobrancelha, como se fosse um comentĂĄrio neutro.
VocĂȘ largou a mochila no chĂŁo e respirou fundo. "Jogo de espadas. NĂŁo foi exatamente rĂĄpido."
Ele inclinou a cabeça, os olhos finalmente se fixando em vocĂȘ. NĂŁo se moveu imediatamente, mas a expressĂŁo mudou sutilmente: do tĂ©dio aparente para um interesse contido. Notou o machucado no seu braço.
"EstĂĄ sangrando." Falou, quase como uma constatação clĂnica. 'Foi alguĂ©m ou foi o jogo?"
"O jogo" VocĂȘ respondeu, se sentando Ă beira da cama, cansada.
Chishiya soltou o ar pelo nariz, um som leve, e entĂŁo tirou as mĂŁos dos bolsos. Pegou o kit de primeiros socorros que sempre trazia, jogou ao seu lado. "Fica quieta." Murmurou, abrindo o kit com gestos econĂŽmicos. "Se eu deixar pra vocĂȘ mesma, vai fazer tudo errado."
Enquanto limpava o corte com cuidado cirĂșrgico, manteve os olhos baixos, concentrado, como se estivesse resolvendo um puzzle. O toque era firme, mas nada grosseiro. Um silĂȘncio confortĂĄvel tomou conta do quarto, quebrado apenas pelo som do algodĂŁo e do esparadrapo.
"VocĂȘ nĂŁo deveria ter ido sozinha para um jogo de espadas." Ele disse finalmente, a voz baixa, sem mudar o tom. "NĂŁo Ă© o seu tipo de jogo."
"NĂŁo tinha escolha" VocĂȘ rebateu, sem encarĂĄ-lo.
Ele fechou a bandagem e apoiou os cotovelos nos joelhos, olhando para vocĂȘ por um segundo. "Sempre tem escolha." Respondeu, enigmĂĄtico, mas seus dedos pararam um momento sobre a sua mĂŁo, um gesto rĂĄpido demais para parecer proposital. Em seguida, recuou e voltou ao seu lugar habitual, como se nada tivesse acontecido.
Na superfĂcie, era o mesmo Chishiya: calmo, frio, irĂŽnico. Mas nos detalhes â o kit que ele trouxe, o olhar atento, a forma como esperou vocĂȘ voltar â era impossĂvel nĂŁo perceber que havia algo alĂ©m. Ele podia nĂŁo ser de palavras, mas estava sempre ali.