𝓔𝓵𝓪 𝓹𝓪𝓼𝓼𝓪, 𝓔𝓵𝓮 𝓻𝓮𝓹𝓪𝓻𝓪 ..
𝓕𝓪𝓿𝓮𝓵𝓪 𝓬𝓸𝓶𝓹𝓵𝓮𝔁𝓸 𝓭𝓸 𝓪𝓵𝓮𝓶ã𝓸| 𝓡𝓙 - 12:00 O sol rachando, as vielas fervendo. Você saiu da farmácia com o uniforme colado no corpo de tanto calor, tentando chegar logo em casa. Já tava de saco cheio do dia, da pressão, do povo te tratando como se você não cansasse. Tudo o que queria era sumir um pouco.
Mas o morro parecia ter outros planos.
Logo na subida da principal, do lado do boteco do Zeca, estavam eles.
Uns cinco caras, todos do movimento. Camisas de time, rádio pendurado no bolso, corrente no pescoço, rindo alto, fumando. Sentados em cima da mureta, tomando cerveja no gargalo. A energia era pesada, tipo presença que toma a rua.
E no meio deles, ele.
Morcego.
Sentado na ponta, camisa do flamengo cheio de corrente e um relógio em seu pulso com uma bermuda preta. Tatuagem no braço brilhando de suor. Copo vermelho na mão, fumando um cigarro enrolado com calma. Tava rindo de alguma coisa, até você aparecer.
Foi automático. O riso morreu na hora que os olhos dele cruzaram com os seus. Os outros continuaram no papo. Ele não. Ele travou.
Você fingiu que não viu. Fingiu tão bem que quase acreditou. Mas quando passou pela frente deles, o silêncio dele fez mais barulho que tudo.
— Ih, olha aí a certinha do curso — um dos caras falou, sem maldade, só de zoeira. — Só passa direto, nem dá bom dia pros cria.
Os outros riram. Você continuou andando, reta. Não ia se deixar levar por provocação de boca de fumo.
Mas aí veio a voz dele.
Baixa. Lenta. Sem levantar.
— Deixa ela. — Quem anda com a cabeça erguida… é porque tem medo de olhar pro chão.
Você parou.
Não porque quis — mas porque algo naquela frase travou teus passos.
Você virou de leve. Ele já tava te olhando. Não sorria. Só te encarava com aquele mesmo olhar que desestabiliza, que entra sem pedir.
Os caras continuavam bebendo e fumando do lado, mas você só ouvia a voz dele, agora.
— Tu finge que não vê nada, né? — Mas quem finge demais, uma hora tropeça.
Você respondeu, seca: — E quem fala demais, esquece que nem todo mundo tem medo.
Ele riu. Baixo. Só ele. Os outros nem entenderam direito, mas ele sim. Te olhou com um brilho estranho nos olhos. Um tipo de respeito misturado com desafio.
— Não quero teu medo, não. — Só quero ver até onde vai tua coragem.
Você sentiu a tensão pulsar no ar, como um fio prestes a estourar. Mas não disse mais nada. Só voltou a andar, com o coração batendo no peito feito tambor.
Enquanto se afastava, ouviu um dos caras perguntar pra ele:
— E aí, qual é a dessa menina? Tu vai pegar?
Silêncio.
A voz dele veio por último, carregada, com a calma de quem sabe exatamente o que faz:
— Nem tudo que me interessa... eu toco. — Às vezes, só gosto de ver até onde aguenta ser olhada.
E você seguiu rua abaixo, como se não tivesse ouvido..
No outro dia a noite tinha descido pesada no morro.
Você vinha voltando do curso, mochila nas costas, olhos baixos, tentando passar despercebida. O beco da Rua 5 estava meio apagado, os postes piscando e os olheiros encostados nos muros, sussurrando coisa no rádio.
Você quase voltou. Mas pensou duas vezes.
Pra que mostrar medo onde já te viram inteira?
Seguiu. Passos firmes.
Mas bastou dobrar a esquina pra sentir: a rua tava diferente. Mais quieta. Mais cheia de coisa que não dava pra ver. E foi aí que a voz dele veio, quase como parte do vento:
— Tu escolheu logo esse caminho hoje?
Você travou.
Ele tava no escuro da parede lateral do açougue, encostado, copo de vidro na mão. Sem camisa. A tatuagem no peito reluzindo sob a luz fraca do poste. Corrente grossa. O cigarro aceso era a única coisa que queimava mais que o olhar dele.
Você tentou seguir.
— Só tem esse caminho até minha casa.
— Sempre tem outro caminho. Mas tu gosta de passar por onde sabe que eu tô.
Você parou de novo. Não porque ele mandou. Porque ele tinha razão.
O silêncio entre vocês ficou maior do que o beco...